Como será o mercado de delivery quando acabar a guerra de descontos?

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A Shell é uma das líderes mundiais no setor de… varejo. Com 28 mil pontos de venda, a empresa de energia supera as 11 mil lojas do Walmart, líder em receita (US$ 517 bilhões) nesse segmento. Mas o mercado do varejo vem sofrendo mudanças com a adoção da tecnologia. A revolução dos apps de delivery reduziu a barreira de entrada em setores como venda de comida e bens de consumo. Ao mesmo tempo, tornou mais valiosa a capilaridade. Para explorar esse potencial, a Shell contratou a Founders Intelligence. Com 60% de sua equipe formada por fundadores de startups (daí o nome) e parceira de grandes corporações, como Unilever, Danone, Facebook e Henkel, a consultoria conhece os dois lados da inovação. No Brasil, a consultoria ajudou a Diageo em uma campanha com a plataforma Rappi. Responsáveis pelos dois projetos, Sandra Steving Villegas (chefe de inovação da consultoria em Londres) e Alex Comninos (CEO e chefe do escritório da América Latina, em São Paulo) avaliam o potencial dos serviços de entrega no Brasil e no mundo.

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Como a Shell e a Diageo estão explorando o potencial dos aplicativos de delivery?

Sandra – A Shell é uma das maiores varejistas do mundo, com 28 mil pontos de venda, embora o público não esteja acostumado a olhar por esse ângulo. Estávamos pesquisando os novos modelos de negócio que se tornaram possíveis. A empresa pode atuar com logística de última milha ou hospedar lojas de outras marcas, além de ter um grande banco de dados de consumidores. Uma possibilidades mais interessantes é ampliar o público potencial, ao ir além de motoristas que param para encher o tanque do carro. Então lançamos um modelo piloto na Holanda e no Reino Unido. Gente que não espera comprar certos produtos em um posto de gasolina passa a fazer isso quando a marca aparece como a solução mais próxima, nos aplicativos de pedido de comida. Foi uma grande mudança de filosofia, para eles, e de percepção de marca, para o público.

Alex – Existe um grande apetite para aproveitar essa entrega de última milha, em até 45 minutos, uma hora. Do ponto de vista da Diageo, existe uma questão anterior: quais são as vantagens de firmar parceria com aplicativos de delivery? Aumentar a receita é uma. Mas, se entender o comportamento do consumidor for outra, você então deve se perguntar: quem acaba ficando com os dados, com o relacionamento e com o valor?

Qual elo na cadeia de entrega de comida tende a ficar com o valor?

Sandra – A viabilidade econômica desse negócio não é simples. A margem de lucro no comércio de comida já era bastante apertada, e os aplicativos estão pegando para si uma boa fatia. Por isso, as empresas de entrega tendem a entrar no preparo da comida, com dark kitchens. Precisam enfraquecer elos na cadeia, dividir o lucro com menos gente, para conseguir resultado.

As plataformas de entrega de comida podem dominar a cadeia de seu setor, como fez a Amazon no varejo?

Sandra – Acho que existe uma questão existencial para cada empresa, quando você põe a Amazon na conversa. É difícil, para qualquer um, dominar um mercado como a Amazon conseguiu. O acesso ao consumidor é a parte mais importante. A Amazon conseguiu vencer por ter uma conta universal para vários serviços. Os restaurantes ganham alcance com os aplicativos de entrega, mas não precisam deles.
Alex – A atividade das empresas de entrega de comida está claramente crescendo, mas faltam evidências para afirmar que o sucesso está garantido no longo prazo. Aplicativos como iFood e Rappi estão entrando em cidades menores, mas, quando viajo para o interior, eu não os vejo em todo lugar. Ainda há um caminho muito longo para o amadurecimento. Acho que muitas grandes empresas estão esperando para ver o que vai acontecer, antes de fazer apostas, grandes investimentos, grandes aquisições.

Algumas empresas de delivery dizem que, daqui a uma década, esse serviço será tão eficiente que cozinhar em casa vai virar um hobby.

Sandra – O delivery já é mais barato, se você considerar o dinheiro da compra dos ingredientes e a hora de trabalho investida no preparo. A questão é que não estamos pagando o custo real do delivery, né? Ainda vivemos numa época em que qualquer corrida de Uber ou entrega do Rappi é um serviço fortemente subsidiado por investidores de capital de risco. Vai ser interessante, nos próximos anos, ver essas empresas buscarem real equilíbrio financeiro. Supermercados são altamente rentáveis, enquanto muitas dessas plataformas sangram dinheiro. Vai ser interessante. Acho que as pessoas gostam da conveniência das entregas, mas não sei se a ponto de pagar o custo real do serviço.

Existem dados para estimar o custo real do serviço das plataformas?

Sandra – Existem alguns. Cada startup que se prepara para um IPO (oferta pública inicial de ações) acaba passando por um escrutínio rigoroso. Um analista passou a limpo os dados da Casper (e-commerce americano de colchões). Ao comparar o volume de vendas, os custos de operação e de aquisição de clientes, concluiu que a empresa está perdendo US$ 200 por cliente. Pode existir algum dado subestimado ali, mas não a ponto de mudar muito esse resultado.

O investimento na consolidação de mercado pode ser proporcional aos ganhos de escala – e à capacidade de ditar preços – em um mercado consolidado. Mas o setor de delivery é dominável, ou estará sempre aberto à chegada de um novo competidor? E, mundialmente, estamos longe da consolidação: Brasil, Estados Unidos, Índia, China, Europa, cada grande mercado tem um líder diferente.

Sandra – Acho que, pelo menos pelos próximos anos, o setor vão continuar fragmentado. Com exceção do Sudeste da Ásia, onde vemos uma rápida consolidação entre serviços similares em países como Malásia, Filipinas, Cingapura e Indonésia. Umas poucas marcas estão dominando esses mercados, em grande parte com dinheiro de fundos de capital de risco da China. A Europa deve continuar fragmentada, porque as líderes são startups locais, com um entendimento bem peculiar da dinâmica local. Ao fazer o projeto piloto com a Shell, a ideia inicial era firmar uma parceria global, mas entendemos que cada mercado teria um comportamento diferente. O que comem, quando comem… às vezes a demanda por almoço é imensa e por jantar, nenhuma, os comportamentos são bem específicos. É difícil ter uma única empresa capaz de compreender todas as nuances. Para a Shell, acabamos criando uma espécie de manual global de boas práticas sobre o que buscar em uma plataforma de delivery. Assim, cada filial vai encontrar um parceiro local, mas afinado com os mesmos propósitos. Não encontramos uma empresa de penetração realmente global.

Alex – Olhe para o Brasil. É um país único do ponto de vista cultural e também regulatório. Recentemente a Justiça negou a existência de vínculo empregatício com os entregadores. Ao mesmo tempo, é similar a qualquer outra região do mundo. A Glovo entrou no mercado brasileiro, travou uma batalha dura com o Rappi, com os dois bastante capitalizados, mas deixaram o país e agora estão deixando outros vizinhos na América Latina. Estão concentrando recursos nos lugares onde são mais fortes. Mesmo quando uma gigante global comprou uma startup local, como a chinesa Didi fez no Brasil com a 99, a transferência de cultura tem acontecido de forma indireta e escalonada. Então, voltando à sua pergunta, acho difícil esse mercado se consolidar no curto para o médio prazo.

Como uma grande empresa pode se manter relevante nessa nova realidade dos aplicativos de delivery?

Sandra – Depende muito se a grande empresa tem ou não contato direto com o público. A Shell atende dezenas de milhares de clientes por dia. Tem visibilidade de marca e credibilidade para transferir aos produtos que vende. Por outro lado, fabricantes de alimentos prontos estão muito ansiosos para desenvolver canais diretos de vendas ao consumidor, mas é muito difícil para uma única marca ocupar a cabeça do cliente. Ele quer conveniência. Ele quer seleção, quer o melhor preço, não será necessariamente leal a uma empresa a ponto de pensar: “vou à Nestlé comprar meu jantar congelado ou a papinha do bebê”. Ou à Diageo comprar vodka. As plataformas vão continuar dominando. Se você é grande o bastante, como a Amazon, terá poder de barganha e será capaz de capturar valor. Se você é apenas uma marca, isso não será possível, não importa quanto dinheiro esteja despejando a fim de ganhar essa corrida. Não há muitos casos de sucesso.

Alex – Os aplicativos acabam mandando todo mundo de volta para a escola. É como se estivéssemos voltando ao início do século passado, quando o conhecimento não estava estabelecido. Pouco tempo atrás, quem dissesse à Nestlé que ela precisava ter seu próprio canal de varejo, a fim de manter contato com o consumidor, seria expulso da sala de reunião em meio a gargalhadas. As grandes empresas devem se manter relevantes, mas não sozinhas. Precisam firmar parcerias, sociedades, comprar empresas. A melhor maneira de uma corporação líder medir seu valor é ao experimentar bastante e embarcar rápido nos casos de sucesso.

Como empresas menores podem tirar proveito do novo cenário?

Alex – A revolução das plataformas está abalando mercados sem relação direta, criando nichos bastante atraentes. O primeiro é o modelo das dark kitchens. Travis Kalanick, fundador da Uber, vê um enorme potencial, a ponto de investir na CloudKitchens. Há espaço para ganhos de eficiência nas cozinhas e muita expectativa do impacto dessa atividade no setor imobiliário. O segundo deles é a nuvem de serviços em torno de motoristas e entregadores. Não sei quantos motoboys existem hoje no Brasil, mas sei que é uma quantidade imensa. Parece haver espaço para atender esse público com planos de saúde, apólices de seguro etc. Na Europa, isso aconteceu. Surgiu uma locadora, a Kovi, especializada em alugar carros para aplicativos de ride-sharing. Muitas ideias interessantes devem vingar nos próximos cinco a dez anos.

Fonte Época Negócios
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