A obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 e seus reflexos trabalhistas

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por William Ávilla

Desde o início da atual pandemia, quando as medidas de isolamento social atingiram proporções globais, ganhou destaque a discussão sobre a possibilidade de particulares serem instados, pelo Poder Público ou por outrem, a tomarem eventuais vacinas produzidas contra o Sars-Cov-2, popularmente conhecido como “coronavírus” ou “COVID-19”.

O começo do processo de imunização em países estrangeiros, aliado à recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou constitucional a prerrogativa de o Estado impor a vacinação contra a COVID-19 aos cidadãos, impondo medidas restritivas àqueles que se recusarem[1], reacendeu o debate em questão e trouxe inúmeras dúvidas.

Tais incertezas afetaram sobretudo os empregadores, pois os ambientes de trabalho, mesmo quando rigorosamente adotadas as medidas sanitárias destinadas à prevenção, ao controle e à mitigação dos riscos, sem prejuízo da conscientização ostensiva dos empregados quanto aos cuidados devidos, apresentam elevado potencial de propagação do vírus.

No cenário exposto, duas questões passaram a centralizar a preocupação dos empregadores: a) se eles têm a faculdade de exigir a vacinação por parte de seus empregados, colocando-a como requisito indispensável à continuidade da relação de emprego; e b) se seria válida a dispensa por justa causa dos empregados que se recusarem a receber a vacina.

Via de regra, “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”, conforme o art. 5º, II, da CRFB. Portanto, com base na aludida diretriz, nenhum empregado poderia ser obrigado – ou mesmo constrangido – pelo seu empregador a tomar a vacina contra o coronavírus, por se tratar, supostamente, de uma liberdade individual do trabalhador.

Acontece que o art. 7º, XXII, da CRFB, em contrapartida, impele o empregador a tomar todas as providências necessárias à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, soando plausível e juridicamente defensável a determinação da vacinação coletiva daqueles que compõem o quadro funcional da empresa.

Indo além, o art. 225 da CRFB garante aos empregados o direito de usufruírem de um meio ambiente de trabalho equilibrado e sadio, dando a entender que o empregador, apesar de autorizado a exercer sua livre iniciativa, permanece atrelado ao mister de proteger a saúde, a integridade física e, em última instância, a própria vida do empregado.

Entender o contrário configuraria flagrante equívoco, até porque o art. 170 da CRFB, depois de elencar a valorização do trabalho humano como um dos fundamentos da ordem econômica, consagrou que esta última “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, inclusive por meio da defesa do meio ambiente do trabalho.

A legislação trabalhista ainda estabelece caber às empresas “cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho” (art. 157, I, da CLT), determinando aos empregados que observem as “normas de segurança e medicina do trabalho” (art. 158, I, da CLT), sob pena de a inobservância constituir ato faltoso (art. 158, parágrafo único, “a”, da CLT).

Logo, como compatibilizar a liberdade individual do empregado, aparentemente desobrigado de tomar a vacina, se assim não desejar, com a responsabilidade do empregador de zelar pelo cumprimento das normas de medicina e segurança do trabalho, ainda mais durante a presente crise sanitária, cujo combate demanda cuidados ainda mais específicos?

No caso concreto, a atuação do empregador deverá se pautar na premissa de que a liberdade individual do empregado, no sentido de rechaçar a vacina (interesse particular), colide com o direito à saúde pública, destinado não só aos demais trabalhadores da empresa, mas à sociedade como um todo (interesse coletivo). Por consequência, em prol do bem comum, o interesse particular precisará sucumbir, necessariamente, ao interesse coletivo.

Daí se retira que o empregador, seja no exercício de seu poder diretivo, seja no intuito de conservar a salubridade de suas instalações, detém a faculdade de: exigir o comprovante de vacinação para autorizar o ingresso no posto de trabalho; suspender o retorno do regime de teletrabalho ao regime presencial; de restringir a circulação nas dependências da empresa; ou mesmo de desligá-los, a depender da modalidade da rescisão.

O comprometimento sanitário, por mirar a proteção da vida e da saúde daqueles que laboram na empresa, não poderá esbarrar na vontade do empregado. Isso porque a vacina funcionará como uma espécie de equipamento de proteção individual (EPI), sem o qual os empregados não poderão desempenhar suas atividades de modo seguro, tornando premente a imunização.

William Ávilla, advogado trabalhista na Dessimoni e Blanco Advogados

No que diz respeito à validade da dispensa por justa causa, caso alguém se negue a tomar a vacina, tem-se que a escolha do empregado por fazer valer sua liberdade individual não servirá como justificativa válida para o empregador rescindir o contrato de trabalho. De fato, o empregado não poderia ser punido por invocar um direito previsto em lei, motivo pelo qual o empregador agiria abusivamente ao lhe imputar a prática de falta grave.

Ademais, a aplicação da justa causa implicaria na transferência – ou na tentativa de transferência, pelo menos – de culpa ao empregado por eventual contaminação, em que pese a dificuldade na identificação do local e do vetor da contaminação. Tal procedimento feriria o princípio da alteridade, de acordo com o qual incumbe ao empregador, única e exclusivamente, assumir os riscos do empreendimento (art. 2º da CLT).

Lembre-se que a dispensa por justa causa, das sanções cabíveis ao empregado, constitui a penalidade mais severa, de sorte e sua cominação carece de ponderação por parte do empregador. Justamente por constituir a punição mais grave, sua confirmação depende da visualização do comportamento do empregado em alguma das alíneas do art. 482 da CLT.

Contudo, a rejeição da vacinação não traduz improbidade, incontinência de conduta ou mau procedimento, desídia, abandono de emprego ou ato de insubordinação ou indisciplina, isto é, a dispensa por justa causa viria desacompanhada de embasamento legal, razão pela qual o empregado reuniria plenas condições de revertê-la judicialmente.

Pelas causas expostas, recomenda-se que, até o início da divulgação dos planos de vacinação, em cadeia nacional, estadual ou municipal, as empresas:

  • Mantenham em funcionamento as medidas implantadas para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de trabalho, intensificando a fiscalização de sua observância pelos empregados;
  • Se possível, aprimorem as medidas implantadas para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de trabalho, contratando profissionais capacitados para tanto ou engajando as áreas competentes da companhia;Auditem a documentação decorrente da implementação das medidas para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de trabalho, preparando-se para possíveis fiscalizações pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pelo Ministério da Economia (ME), que absorveu o extinto Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ou por outros órgãos de vigilância sanitária;
  • Pesquisem previamente os planos de vacinação que poderão contemplar os empregados, sobretudo em âmbito regional, orientando-lhes acerca sobre os procedimentos e documentos necessários para habilitação; e
  • Discutam internamente, privilegiando a criação de comitês específicos, as políticas a serem adotadas após a disponibilização em massa da vacina;
  • Realizem a busca ativa dos casos para prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos casos de infecção pelo SARS-CoV-2 por empregados, terceirizados, fornecedores, visitantes ou clientes;
  • Proíbam o ingresso de empregados, terceirizados, fornecedores, visitantes ou clientes com sintomas respiratórios (tosse seca, dor de garganta ou dificuldade respiratória, acompanhada ou não de febre, diarreia, dor de cabeça, perda de paladar ou olfato, conjuntivite e erupção cutânea da pele ou descoloração dos dedos das mãos ou dos pés, etc.) nas dependências da empresa;
  • Garantam o afastamento imediato de profissionais com sintomas relacionadas à COVID-19, inclusive de seus contatantes, ainda que assintomáticos;
  • Implementem, de forma integrada com os tomadores de serviços terceirizados, todas as medidas de prevenção recomendadas pelas autoridades competentes, de forma a garantir o mesmo nível de proteção a todos os trabalhadores do estabelecimento;
  • Estabeleçam, preferencialmente, o regime de trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância, determinando o retorno ao regime de trabalho presencial somente quando as autoridades declararem encerrado o estado de emergência em saúde pública decorrente da pandemia do SARS-CoV-2;
  • Retirem das organizações das escalas de trabalho preferencial os trabalhadores que façam parte dos grupos de risco identificados pelos órgãos de saúde, como, por exemplo, maiores de 60 (sessenta) anos de idade, gestantes, lactantes, doentes cardíacos, diabéticos, doentes renais crônicos, transplantados, portadores de doenças tratadas com medicamentos imunodepressores e quimioterápicos, hipertensos ou possuidores de qualquer outra comorbidade que possa potencializar os sintomas e riscos da provenientes da COVID-19;
  • Desenvolvam planos de contenção e prevenção de infecções pelo novo coronavírus, observadas as recomendações das autoridades locais, mediante a adoção de medidas de controle de cunho administrativo ou estrutural para evitar a exposição dos trabalhadores, próprios ou terceirizados, no ambiente de trabalho presencial;
  • Negociem com o sindicato das respectivas categorias profissionais planos para redução dos prejuízos econômicos sofridos e seus impactos na manutenção do emprego e da renda dos trabalhadores (trabalho remoto, flexibilização da jornada de trabalho, banco de horas, concessão de férias coletivas ou individuais, etc.);
  • Comuniquem o plano de contingência aos trabalhadores, expedindo comunicações diárias referentes ao tema e realizando treinamentos sobre políticas de redução de propagação do vírus, higiene geral, sintomas, procedimentos em caso de estar doente, limpeza e desinfecção, distanciamento social e gerenciamento de estresse;
  • Disponibilizem, gratuitamente e em quantidade suficiente, sabonete líquido, papel toalha e álcool em gel 70%, em todos os estabelecimentos nos quais haja concentração de empregados, na entrada, nos locais de trabalho, nos sanitários, nos refeitórios, etc.;
  • Implementem políticas e práticas de distanciamento social no trabalho;
  • Orientem todos os trabalhadores sobre medidas de proteção à transmissão da COVID-19, alertando as equipes sobre a necessidade de utilizarem os equipamentos de proteção necessários e manterem o devido distanciamento;
  • Revisem o Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais (PPRA) e o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), com registro do novo risco epidemiológico oriundo da COVID-19; e
  • Elaborar e afixar em locais visíveis aos empregados, e enviar aos seus endereços eletrônicos, ordens de serviço contemplando medidas de higiene e segurança para evitar a transmissão da COVID-19, de acordo com cada função.

Concluindo, recomenda-se que as empresas, além de seguirem as instruções indicadas acima, não dispensem por justa causa, ao menos por ora, salvo previsão em regulamento interno ou norma correlata, os colaborares que se recusarem a tomar a vacina, recorrendo aos seus setores jurídicos ou advogados contratados para avaliar cada caso individualmente, especialmente porque inexistem lei ou precedentes judiciais sobre o tema.

[1] Entendimento firmado no julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que tratam unicamente de vacinação contra a Covid-19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, em que se discute o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas.

 

* William Ávilla é advogado trabalhista na Dessimoni e Blanco Advogados  
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