Por que os jovens fingem amar trabalhar?

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“Nem uma única vez no início da minha semana de trabalho — na fila para comprar café, no metrô lotado, ao começar a esvaziar minha caixa de e-mail lotada — eu parei, olhei para os céus e suspirei: #GraçasADeusÉSegunda. Aparentemente, isso faz de mim uma traidora da minha geração”.

É assim que a jornalista Erin Griffith, do The New York Times, ela mesma uma millennial, começa sua coluna sobre como os jovens encaram suas carreiras atualmente. Para escrever o texto, ela fez recentemente uma série de visitas a unidades da WeWork em Nova York, onde encontrou almofadas que imploram a inquilinos ocupados para “fazer o que amam”, sinais de neon pedindo a eles que “se esforcem mais” e murais espalhando o evangelho do Thank God It’s Monday (Graças a Deus é Segunda-Feira)”.

Lá, encontrou uma cultura de trabalho implacavelmente positiva e obcecada com o esforço, espelhada em novas empresas de mídia como a Hustle, que produz uma popular newsletter de negócios, e a ONE37pm, companhia criada por Gary Vaynerchuk, que glorificam a ambição não como uma forma de alcançar um objetivo, mas como um estilo de vida.

Processo interminável

No site da ONE37pm, a aba “Sobre Nós” diz que “o empreendedorismo é maior do que uma carreira”. “É ambição, determinação e esforço. É uma performance ao vivo que ilumina a criatividade”. Ou seja, é um processo interminável que sempre leva o profissional de “volta à mesa do trabalho”, diz Erin. Mesmo a ida a um show acaba se tornando apenas uma maneira de obter mais inspiração para projetos.

Nessa nova cultura de trabalho, não basta suportar ou apenas gostar do emprego. Os profissionais devem amar o que fazem e, depois, promover esse amor nas redes sociais, de forma a fundir suas identidades com as de seus empregadores. Por que mais o LinkedIn criaria sua própria versão do Instagram Stories?, questiona a jornalista.

A WeWork, por exemplo, a caminho de se tornar uma Starbucks dos escritórios compartilhados, já exportou para 27 países o vício pelo trabalho, segundo Erin. Em janeiro, o cofundador da WeWork, Adam Neumann, anunciou que sua startup passaria a se chamar The We Company, para refletir uma expansão para os ramos habitacional e educacional.

O cliente ideal seria alguém tão apaixonado pelo modelo de escritórios da WeWork que dormiria em um apartamento WeLive, faria exercícios em uma academia Rise by We e até levaria os filhos para escolas WeGrow.

Cultura exploradora

A cultura do vício pelo trabalho é uma fraude, na avaliação de Erin. Afinal, convencer uma geração de profissionais a trabalhar pesado sem parar é conveniente para quem está na liderança das empresas.

“A vasta maioria de quem defende esta cultura não põe a mão na massa, fazendo o trabalho de verdade. São gerentes, financistas e donos”, diz David Heinemeier Hansson, cofundador da Basecamp, uma empresa de software, à jornalista norte-americana.

Hansson, autor do livro It Doesn’t Have to Be Crazy at Work, defende que, apesar de pesquisas mostrarem que longas horas de trabalho não melhoram nem a produtividade nem a criatividade, os mitos sobre o excesso de trabalho persistem porque justificam a extrema riqueza criada para uma pequena elite. “É sombrio e explorador.”, afirma.

Elon Musk é um excelente exemplo de quem exalta o trabalho alheio — e que se beneficia por isso, segundo Erin. Ele tuitou em novembro que há lugares mais fáceis de se trabalhar do que a Tesla, “mas que ninguém mudou o mundo trabalhando 40 horas por semana.” O número “correto” de horas “varia por pessoa”, Musk ponderou, mas é “de cerca de 80, com pico de até 100 às vezes. O nível de dor aumenta exponencialmente acima de 80 ”. O empresário, que tem 24 milhões de seguidores no Twitter, disse que “se você ama o que faz, (na maioria das vezes) não parece trabalho”.

Segundo a jornalista do The New York Times, a indústria de tecnologia começou a cultivar a cultura do vício no trabalho na virada do milênio, quando o Google e seus semelhantes passaram a alimentar e massagear seus funcionários. Os mimos tinham como objetivo ajudar as empresas a atrair os melhores talentos — e mantê-los nos escritórios por mais tempo. Parecia invejável: quem não gostaria de um empregador que literalmente cuidasse de sua roupa suja?

Hoje, contudo, à medida que a cultura do setor de tecnologia se espalha por todos os cantos do mundo dos negócios, ela lembra as propagandas soviéticas, que promoviam feitos de produtividade praticamente impossíveis de serem alcançados para motivar a força de trabalho, diz a jornalista. As mensagens passadas hoje glorificam o lucro pessoal, mesmo que os chefes e investidores sejam quem mais se beneficia dos ganhos — e não os próprios trabalhadores. Até porque o crescimento dos salários se mantém estagnado há anos.

Erin afirma que o conceito de produtividade “assumiu uma dimensão quase espiritual”. Os “techies” internalizaram a ideia — enraizada na ética protestante — de que o trabalho não é algo que você faz para conseguir o que quer, mas que o trabalho em si é tudo. Portanto, qualquer truque ou mimo oferecido pelas empresas que permita que o funcionário trabalhe mais não é apenas desejável, mas inerentemente bom.

Aidan Harper, que criou a campanha 4 Day Week (quatro dias por semana) para diminuir a jornada de trabalho na Europa, argumenta que isso é desumanizante e tóxico. “O vício no trabalho cria a suposição de que o único valor que temos como seres humanos é nossa capacidade de produtividade, e não nossa humanidade”, afirma Harper.

Vício em trabalho

É fácil se viciar no ritmo e no estresse do trabalho em 2019. Bernie Klinder, consultor de uma grande empresa de tecnologia, disse a Erin que tentou se “limitar” a trabalhar 11 horas por dia cinco dias por semana. “Se seus colegas são competitivos, trabalhar numa jornada normal fará você parecer um preguiçoso”.

Ainda assim, ele é realista sobre sua importância na empresa. “Eu tento ter em mente que, se eu cair morto amanhã, todos os meus prêmios recebidos no trabalho estariam no lixo no dia seguinte e minha vaga seria colocada no jornal antes do meu obituário”, diz.

A consequência lógica do trabalho em excesso é o burnout. Esse é o tema de um artigo escrito por Anne Helen Petersen para o BuzzFeed. Ela questiona: se os millennials são preguiçosos, como podem estar tão obcecados por trabalho?

Os millennials, argumenta Helen, estão apenas se esforçando desesperadamente para satisfazer suas próprias expectativas. Uma geração inteira foi criada para esperar que as boas notas e o desempenho extracurricular os recompensassem com trabalhos satisfatórios que alimentassem suas paixões.

Em vez disso, eles “acabaram com um trabalho precário e sem sentido e com uma montanha de dívidas de empréstimos estudantis. E, assim, fingir estar em ascensão, louco por uma segunda-feira, começa a fazer sentido como um mecanismo de defesa”, afirma.

Grande parte dos empregos (até os melhores) estão repletos de tarefas penosas e sem sentido. As corporações nos decepcionam de alguma forma. Ainda assim, as empresas insistem em “vender” algum propósito maior. O Spotify, por exemplo, diz que sua missão é “liberar o potencial da criatividade humana”. Já o Dropbox afirma que seu objetivo é “liberar a energia criativa do mundo, ao criar uma maneira melhor de trabalhar”.

Prática mercantilista

David Spencer, professor de economia da Universidade de Leeds, diz que essa postura corporativa data da ascensão do mercantilismo na Europa do século 16. “Tem havido uma luta constante dos empregadores para que o trabalho seja venerado de modo que não se preste muito atenção a suas características desagradáveis”.

Em última instância, o profissionais vão precisar decidir se admiram ou rejeitam esse tipo de devoção. Da mesma forma que o tweet de Musk recebeu inúmeras críticas, ele também atraiu elogios e pedidos de emprego. Erin conclui com acidez o artigo. “Se estamos condenados a trabalhar até morrermos, que finjamos então que gostamos disso. Mesmo nas segundas-feiras.”

Fonte Época Negócios
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